Os Pilares
Marquei uma reunião com o pessoal de compras de um dos grandes grupos
empresariais brasileiros.
Saí de meu escritório com noventa minutos de antecedência e na hora exata eu
estava lá. A recepcionista avisou que a pessoa que me receberia na hora
marcada estava numa reunião e que havia outra pessoa esperando e eu teria
que aguardar por tempo indeterminado. Fiquei invocado, mas para não perder a
viagem decidi esperar. Em pé, na recepção, sem água, sem café. Se quisesse
sentar, teria que ser no degrau que dá para a calçada.
Depois de uma hora e meia a recepcionista me chama com o telefone na mão: -
Senhor Leonardo. A assistente do fulano quer falar com o senhor.
Pô, não bastasse o mico de ficar ali em pé, ainda tenho que ouvir a moça me
chamar de Leonardo? Mas tudo bem, vou até o telefone e ouço - sem acreditar
- que o fulano entrara em reunião com o diretor e não havia previsão para me
atender. E a moça me perguntava se eu me incomodaria por esperar mais ou
preferia retornar outro dia que "eu tentarei encaixar, seu Leonardo". E eu
estava numa empresa que fatura quase um bilhão de reais por ano!
Fui embora indignado. Inconformado. Como é possível?
Pois bem. Até os anos oitenta a melhor fórmula para garantir retorno aos
acionistas era o "bom gerenciamento". E o desafio dos teóricos foi traduzir
esse bom gerenciamento em fórmulas. Assim surgiram muitos gurus e teorias de
administração - a maioria modismos ou velhas práticas com nomes novos - que
formaram uma geração de administradores em busca do "retorno aos
acionistas". A qualquer custo.
O problema é que muito do que consideramos "bom gerenciamento" são atributos
e valores intangíveis: gerenciamento de recursos humanos, por exemplo, foco
no cliente, visão estratégica, capacidade de execução e prestação de
serviços, por exemplo, que os modelos de administração tentam de todas as
formas quantificar. Para lançar os indicadores desses atributos numa
planilha Excel é necessário reduzi-los a números, deixando de fora a
complexidade das interações.
Foi assim que uma geração inteira desaprendeu a lidar com o intangível.
Pois então... O resultado dessa incapacidade de dar valor ao intangível é
que os administradores só conseguem trabalhar com o que dá pra contar:
Faturamento. Custos. Lucro. E, do que dá pra contar, o mais fácil é cortar
custos.
É assim que a tal "crise" se transforma em desculpa. Em nome dela (a crise)
é possível reduzir todo tipo de "custo" sem muita especulação. Dá pra mandar
qualquer funcionário pra rua. Dá pra cortar o cafezinho. Dá pra desmarcar
compromissos. Dá pra arrancar o couro dos fornecedores. Dá pra cancelar os
eventos. Dá pra cancelar o jornal interno. Dá até para atender mal o cliente
- afinal, estamos em crise, tá tudo desculpado!
Vá ao aeroporto ou a um banco e você verá mais da metade dos terminais de
atendimento sem nenhum atendente e uma fila imensa de clientes perdendo
tempo de vida. As empresas não têm gente suficiente pra atender os clientes!
E quando você reclama o atendente olha com aquela expressão de "num sei"...
O gerente? Ah, ele está ocupado com tarefas que deveriam ser do supervisor
que foi mandado embora.
A tal da crise vem a calhar para ser usada como desculpa pelos
incompetentes. Ela custará muito mais que dinheiro. Está criando uma cultura
de profissionais sem educação, gananciosos, egoístas e medíocres.
Quando a crise passar, essa será a cultura de negócios do Brasil.
Todo empreendimento, seja uma siderúrgica com vinte mil funcionários ou o
carrinho de pipoca do zé, sustenta-se sobre alguns pilares. A Engenharia, a
produção, o financeiro, as compras, a informática, os recursos humanos, a
administração, o marketing, o comercial... Esses pilares variam conforme o
negócio, mas a maioria sempre está lá. O Zé da Pipoca tem engenharia, sim
senhor. Tem finanças. Tem recursos humanos. Tem até marketing, não tem?
Pois bem. No início dos anos noventa, ao mergulhar na globalização,
esperávamos ter os mercados mundiais abertos para os produtos brasileiros.
Mas num instante descobrimos que teríamos que concorrer com japoneses,
alemães, estadunidenses e chineses. Foi então que a ineficiência, a
desorganização e o amadorismo brasileiros apareceram de forma clara. Não
dava pra nós.
Buscando uma solução importamos programas de qualificação como a série ISO
9000 e partimos para controlar, medir, mapear e organizar nossos processos
produtivos. Melhoramos excepcionalmente e os pilares fundados nas "exatas",
principalmente a engenharia, produção, compras e finanças, desenvolveram
métodos e indicadores capazes de mostrar com clareza sua utilidade e
eficiência. Ganharam previsibilidade. Variabilidade mínima. Controle.
Se você não cabe na planilha, esqueça...
Ao mesmo tempo as disciplinas "humanas", ficaram para trás. Áreas como o
marketing e recursos humanos, que lidam com questões subjetivas, até
tentaram utilizar indicadores, mas só conseguiram produzir "dados
emocionais". E os engenheiros e contadores riram...
Embora todos os discursos falassem da importância do foco nas "humanas",
elas passaram a ser duramente questionadas nas reuniões de resultados.
Enquanto a "produção" e a "controladoria" exibiam seus minuciosos
relatórios, as "humanas" não conseguiam provar que eram úteis e necessárias.
Passaram a ser rotuladas de "serviços de suporte", "prestadores de serviços"
e "centros de custos". As áreas que gastam o dinheiro que as "exatas" penam
para ganhar, sabe como é? Pois é...
Quando vem a crise (mais uma...), dança quem não consegue provar sua
utilidade, seu valor. Seu "retorno do investimento". Se uma planilha Excel
não consegue mostrar para que serve ou quanto vale o seu trabalho, bote as
barbas de molho.
E então vamos demitir. Cortar os benefícios. Parar com o treinamentos. Olha
o cafezinho! Parem com as propagandas! Reduzam as páginas ou a periodicidade
do jornal interno ou quem sabe, corta o jornal que isso é isso, pô. E nem
pensem em festa junina, tá bom? Estamos em crise!
E sabe qual será a consequência para o pessoal que toma a decisão de cortar?
Nenhuma. Essa turma sabe ou acredita que aquilo que não cabe na planilha,
não existe.
Se você não cabe na planilha, esqueça...
Essa gente não tem fé. Só tem medo.
Pois bem... Para lidar com os pilares de "humanas" é preciso mais do que
competência técnica. Muito mais que um diploma de MBA. É preciso ter
culhões. Culhões para confiar em resultados que não podem ser apresentados
numa planilha Excel.
Fala a verdade, no meio da crise quem é que tem culhão para apostar no
invisível? Na crise, só aposte no que é garantido. No que dá pra ver. No que
é exato. No previsível. Faça como todo mundo faz. Sem subjetividades,
emoções e percepções.
A crise que vivemos é uma crise de confiança, de fé. Sem fé os negócios
passam a ser "fabricar, controlar e vender". Só.
O maior prejuízo da crise que está aí não pode ser contabilizado. É o
predomínio dos pequenos executivos que estão derrubando os pilares de
"humanas".
Essa gente não tem fé. Só tem medo.
E pra terminar, uma frase de Benjamin Franklin, cientista, político e
filósofo estadunidense:
Aquele que é bom para elaborar desculpas, raramente é bom em qualquer outra
coisa.
Luciano Pires
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